Como reparar
Uma resposta aos maus tratos e abusos
No dia 01 de julho de 2024 várias Irmãs participaram deste encontro promovido pela Porticus na Universidade Católica Portuguesa, em Lisboa. Este tema tem sido amplamente trabalhado pela CEP, Conferência Episcopal Portuguesa e pela CIRP, Conferência dos Institutos Religiosos de Portugal, seguindo as orientações do Papa Francisco, para reparar e cuidar das vítimas de abusos, sobretudo quando os abusadores são pessoas da Igreja Católica.
Vários profissionais nos falaram sobre este importante tema, dentre eles psicólogos, juízes, advogados e o Grupo Vita, que está a prestar este serviço de acompanhamento às vítimas e os estudos dos casos.
A dra. Susana nos falou sobre a teoria da vinculação de suma importância para a vida humana, segundo alguns estudiosos: Donald Winnicott, Melanie Klein e Bowby, das décadas de 50/60.
A Neurobiologia do vínculo ocorre nos primeiros 1.000 dias de vida. 277 dias na barriga da mãe e uns 2 anos fora da barriga. Quanto mais afeto a criança recebe, mais desenvolve um cérebro saudável. Mas se a mãe tiver estressada, a placenta também absorve o stress. Por isso não se pode deixar uma criança a chorar até se calar, pois vai liberar muito cortisol, o hormônio do estresse e isso lhe faz mal. A mãe precisa acalmar o seu bebê.
Quanto mais a mãe amamenta, dá carinho e afeto ao seu bebê, ou na sua falta o cuidador principal o faz, mais é liberado o hormônio da ocitocina responsável pelo bem-estar, calma e alegria.
O que nos torna humanos é ter um cérebro muito mais evoluído do que os outros seres. O nosso cérebro se desenvolve através das nossas relações entre humanos. Olhamos para o mundo segundo os olhos de quem cuida de nós.
Saúde física e psicológica: pessoas mais saudáveis são as que têm relações de cuidado na sua vida. Na nossa espécie humana, não ser cuidado é igual a não sobreviver. Sobrevive quem consegue fazer aliança, quem se consegue fazer querido e desejado.
O cérebro só fica maduro plenamente com uns 25 anos de idade. Por isso, precisamos entender o mundo dos mais novos. Nos momentos de grandes sofrimentos, eles não conseguem pensar muito, as emoções falam mais alto. Os adultos precisam transmitir confiança e segurança, empatia, respeito e atitude de cuidado com o outro, saber dialogar e escutar as emoções dos mais novos.
O nosso sistema nervoso autónomo, SNA é o nosso radar de sobrevivência. Procura 24 horas sinais de perigo e de proteção. Em situações graves de perigo, a pessoa fica paralisada, congelada. Não consegue fugir do perigo. Quanto mais paralisado, maior a possibilidade de trauma. O trauma desliga o SNA. O trauma não é ser violado, mas o que acontece em nosso corpo, depois de termos sofrido uma experiência difícil. Por isso quando uma criança é negligenciada, batida, rejeitada, fica paralisada. A disciplina punitiva, ameaças, agressões gera a paralisação do SNA. A prevenção do trauma começa na infância com uma sociedade informada para o trauma. A teoria da corregulação é sobre a relação: nós podemos nos ajudar mutuamente a voltar a harmonia e a paz interior. Quando desregulamos outra pessoa pode nos ajudar a voltar a paz e a segurança, sobretudo quando temos vínculo com as pessoas e confiamos uns nos outros. Por exemplo: se o cuidador for amoroso, a criança será mais calma para lidar com as suas emoções; se uma pessoa tiver nervosa e eu chegar mais calma poderei ajudá-la a regular o seu SNA. Neurocepçao – Teoria polivagal de Stephen Porges, 1994.
A prevenção dos abusos se faz num conjunto de pequeninas coisas. Adultos que agridem são pessoas que não foram cuidadas. É importante saber que estamos sempre a deixar marcas na vida uns dos outros. Que marcas deixamos?
Há diferentes tipos de reparação:
Reparação psicológica: serviços de escuta. Se alguém confiou em nós e nos contou algum tipo de abuso que sofreu, precisamos ter responsabilidade do sigilo, sermos dignos desta confiança. Encaminhar para um técnico que pode ajudar ainda mais. Ouvir é ter interesse pelo que o outro quer falar, mais do que ser interessante.
Quando uma criança sofreu algum tipo de abuso, e precisa de proteção, não lhe perguntar de imediato sobre isso. A química de cortisol e adrenalina ficam no corpo 26 horas depois do acontecimento, o que deixa a criança agitada e a sofrer. Se continuar a falar no assunto vai liberar ainda mais esse hormônio do estresse. A primeira coisa a se fazer é acalmar e dar segurança, ver o que a criança precisa para ser protegida fisicamente, depois num outro momento vamos trabalhar a memória. Ela vai contar o que lhe aconteceu a uma pessoa em quem confia.
Todos nós lidamos com pessoas que foram abusadas na sua história de vida, sem o sabermos. Pois por fora vemos uma pessoa sociável, sorridente, dinâmica, afável, mas a sua realidade interna pode ser de isolamento, vergonha, cérebro híper vigilante, medo, raiva, baixa autoestima, solidão.
Quando uma pessoa confia em mim e conta o abuso que sofreu, o que dizer: Obrigado por confiares em mim. Estou aqui para te ajudar. Sinto muito o que te aconteceu. O que não devo dizer: Quem foi? Como foste abusado? Tenta que isto não te afete tanto! Por que não me contaste mais cedo? Já aconteceu há tanto tempo, já passou!
Reparação financeira: É uma compensação que reconheça a dor de quem sobreviveu a estes abusos e às consequências que teve de suportar, e que coopere para que essas pessoas possam ter uma vida mais livre, digna e devidamente reconhecida. O serviço de reparação é personalizado, cada caso precisa ser bem estudado pelos técnicos.
Esta missão de reparar é tarefa do Estado. A Justiça Restaurativa é um conjunto ordenado e sistêmico de princípios, métodos, técnicas e atividades próprias, que visa à conscientização sobre os fatores relacionais, institucionais e sociais motivadores de conflitos e violência, e por meio do qual os conflitos que geram dano, concreto ou abstrato são solucionados de modo estruturado.
Tomamos maior consciência que ainda há muito o que fazer para reparar e prevenir os maus tratos e os abusos. É necessário falarmos sobre isso, adquirir este conhecimento para prevenir esses males. É necessário quebrar o silêncio, pois em cada cinco crianças, uma sofreu algum tipo de abuso físico, psicológico ou sexual.
O que cura é a conexão e o amor.